sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Off-Topic (16)

O preconceito do bem

Certa vez, numa aula de Literatura, o Professor afirmou: “também existe o preconceito do bem, sabiam?”. A turma fez aquela tradicional cara de paisagem, então o Mestre continuou: “Sim: preconceito não é apenas ter imagem ruim de grupos, pessoas: também pode haver imagens boas que são preconceituosas”. O silêncio continuava, e ele prosseguiu: “É, isso mesmo! Vou chocar vocês agora: sabiam que tem japonês vagabundo, safado, criminoso? Pois é! Nem todo japonês é honesto e educado, tem muito fdp por lá também”.

Verdade: há milhões de japoneses prestativos, humildes, amigáveis e solidários. Mas há, também, muitos facínoras, desumanos, lunáticos, pervertidos, fraudadores e mentirosos (todas as notícias linkadas são recentes). Em resumo, um japonês não é “uma pessoa melhor” por ter os olhos puxados ou porque nasceu naquela ilha de 378 mil km²: o que acontece é que, lá, contravenções e crimes menores são punidos mais rigorosamente, e há maior e melhor acesso à educação.

Porém, nem isso impede que o mau-caráter muitas vezes vença e vigore.

Conca: jogador que mais atua no Campeonato Brasileiro
Falando sobre Argentina e Brasil, temos pelo menos dois “preconceitos do bem” bastante difundidos.

Quatro anos atrás, Muricy Ramalho teceu elogios ao jogador Darío Conca, falando sobre sua dedicação e doação à equipe do Fluminense: “não perde nenhum jogo, é o que mais treina, não fica questionando”. O treinador viu nessas qualidades individuais do meio-campista uma característica inata dos argentinos: “Isso é do argentino. Os clubes europeus preferem [jogadores argentinos] porque eles não reclamam de saudade, não sofrem com o frio, não ligam pra comida, se o bife está duro” -- distinção semelhante foi feita pelo técnico uruguaio Gerardo Pelusso.

Conca não é propriamente uma exceção – vários argentinos, no futebol brasileiro ou europeu, e em diversas outras profissões, demonstram essa “capacidade de adaptação”, maturidade e devoção aos compromissos –, porém, existem muitos argentinos preguiçosos, mimados e inconvenientes.

Brasileiros: um povo feliz e acolhedor
Quanto aos brasileiros, o preconceito do bem mais comum certamente é aquele do “povo alegre e amistoso”, que em último grau vai se confundir com a “receptividade” a diferentes culturas, etnias, religiões, etc. Seguramente muitos estrangeiros e minorias se sentiram acolhidos no Brasil, mas tratar isso como um fato não passa de propaganda e pode ser bastante perigoso, não à toa existem estudos e análises sobre esse mito.

Conforme dissemos no texto sobre o Mundial, a Copa do Mundo realizada no Brasil fomentou e reforçou muitos estereótipos. Dentre essas muitas imagens, uma, positiva, foi a mais propagada: a dos “alemães bonzinhos”.

Os elogios começaram muito antes, falando da simpatia de Schweinsteigger, Klose e companheiros. Lukas Podolski, por exemplo, assumiu a alcunha de “meio brasileiro”, postando mensagens em português e fotos interagindo com a cultura local (da novela à feijoada) em seu Instagram. No entanto, surgiu na internet uma epidemia de pequenos textos falando da hombridade e "caráter superior" dos alemães.

Lukas Podolski, "o mais brasileiro dos alemães"
Já antes da humilhante vitória por 7 a 1, “bombou” o seguinte post:

"Vou torcer para a Alemanha. Por que?
Há 6 meses, os alemães chegaram e…
- Compraram um terreno,
- Construíram um hotel,
- Construíram um centro de saúde,
- Construíram um campo de futebol,
- Doaram uma ambulância,
- Criaram um programa de escola em tempo integral em Cabralia,
- Fizeram uma estrada para interligar o centro de treinamento,
- Não trouxeram funcionários alemães, contrataram as pessoas da cidade,
- Gerando 250 empregos diretos no local de treinamento,
Depois a seleção alemã chegou e…
- Quando não estavam treinando, estavam socializando com as pessoas na cidade e na praia,
- Participaram de festas com a população,
- Interagiram com os índios e atenderam suas demandas,
- Vestiram a camisa do time local (o Bahia),
Dá pra não torcer pra esses caras?"

bandeira da "Brasilemanha", no Rio de Janeiro
A maioria das seleções “atendeu o público”, etc. Doações em dinheiro ou material para hospitais? Muitas equipes também fizeram. E que seleção trouxe funcionários do próprio país para trabalhar no hotel/CT onde tenham se hospedado?! Até aí, nada de especial.

Com a eliminação brasileira e, um dia depois, a classificação argentina à Final, o texto ficou ainda mais popular e passou a ter o título “Por que torcer pela Alemanha na final”, acrescentando informações sobre a vitória diante do Brasil:

- Nunca desrespeitaram os brasileiros,
- Combinaram no intervalo do jogo em diminuir o ritmo para não desrespeitar a seleção anfitriã,
- Mostraram que seus ídolos são os nossos jogadores do passado,
- Pediram desculpas após a goleada, e tiveram classe para ganhar

Nada muito diferente do que vimos três anos atrás, quando o Barcelona goleou o Santos na final do Mundial de Clubes, certo? Porém, os maiores elogios aos alemães se deram quanto aos gastos do “próprio bolso” em prol da “comunidade local” e “deixados como herança”:

- Vão deixar tudo que construíram para a população da cidade.

Uma série de mentiras misturadas com falta de apuração dos fatos gera o que chamamos desinformação.

Governador da Bahia e o chefe da delegação alemã
Primeiro ponto: em dezembro do ano passado foi noticiado que o Governo Estadual da Bahia iria pagar parte das despesas da seleção alemã durante sua hospedagem. Os gastos dos cofres públicos foram calculados em torno de R$ 1 mi, e incluíram a construção de todo o centro de mídia utilizado pela federação.

Outra apuração jornalística, depois que os boatos do “hotel construído e doado” ganharam mais força, revelou que o Centro de Treinamento já existia havia cinco anos (!) e era, na verdade, um projeto imobiliário. Reportagem da Folha de S. Paulo, no começo do ano, falava de “receio e esperança” dos moradores locais com o empreendimento.

Entretanto, a grande revelação aconteceu semana passada, já um mês depois do fim da Copa do Mundo: a empresa (alemã) contratada pela delegação alemã é acusada de calotes em vários prestadores de serviço (brasileiros), chegando à casa de 1 milhão de reais, incluindo 6.3 mil em contas de luz. Depois da repercussão e reconhecimento da dívida, o grupo contratado ainda acusou o Banco Central pelos problemas de pagamento!

E agora, por onde anda o famigerado "Autor Desconhecido" do viral “Por que torcer pela Alemanha”?...

Alemães não são “bonzinhos”, como quiseram pintar, e também não são “nazistas”, como já foram pintados. Alemães são pessoas: nem melhores nem piores que argentinos ou brasileiros. Simplesmente vivem num país melhor organizado e mais rígido em suas leis.

Brasileiros e Alemães: "Temos que torcer pra eles"
Queriam torcer pela seleção alemã contra a argentina? Perfeito, sem problemas! O time alemão é gigante historicamente e, nos últimos anos, é o que apresenta o melhor futebol coletivo. Assim, torcer pela beleza do jogo deles era a única justificativa aceitável.

O resto é hipocrisia. Ou síndrome de Estocolmo.

Um comentário:

  1. Excelente texto. E muito bem observado: não darão o mesmo destaque ao calote. Aliás´, é típico do Brasil exaltar "malandragem" e radicalizar com honestidade.

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